Há
algum tempo tenho a feliz oportunidade de trocar alguns e-mails com uma pessoa
singular, figura muito querida e respeitada no meio náutico. Circunavegou o
globo em família a bordo do Rapunzel, um veleiro de aço de 43 pés, construído
especialmente para essa empreitada. Aos 43 anos largou uma sólida carreira como
engenheiro mecânico na indústria automobilística e, em família, desengavetou e
realizou o sonho de viajar e conhecer o mundo.
Marçal
Ceccon é o nome dele. Depois de ler alguns de seus escritos minha curiosidade e
admiração cresceram enormemente e tive a ideia dessa entrevista para saber mais
dessa fantástica experiência.
Marçal, quais foram as motivações que
você teve quando decidiu com a família circunavegar o planeta?
Marçal Ceccon: No inicio dos anos 80 já
velejávamos no mar e eu estava planejando cruzar o Atlântico em nosso veleiro de 23 pés com um amigo. No
meio desse planejamento meu amigo “desembarcou” da aventura e fiquei frustrado.
Foi então que a grande ideia surgiu, porque não fazer isso com a família, minha
tripulação tradicional? Aí os planos ficaram mais ousados, ao invés de cruzar o
atlântico, porque não morar a bordo e dar a volta ao mundo? Afinal, esse era o
sonho de todo velejador!
A preparação da família Ceccon para
soltar as amarras definitivamente demorou 8 anos (1983-1991), o que vocês
fizeram nesse tempo além de cuidar da construção do barco?
Em 83 começamos a construção
do Rapunzel 1 um veleiro de 38 pés. Esse barco se revelou pequeno
quando estávamos na fase de envernizar o interior. Acabamos vendendo
ele começando novamente do zero o Rapunzel 2, com 43 pés, com o qual
viajamos!
Enquanto construímos esses dois barcos montamos nosso
roteiro, estudamos a meteorologia das regiões ao longo do
caminho, aprendemos a língua francesa, fomos nos desligando de compromissos,
despesas, e necessidades que teriam que ser deixadas para trás.
Equipamos o barco, preparamos a família, lemos muito sobre os
lugares que iriamos visitar. No final tínhamos a sensação de que
nosso espírito já estava viajando muito antes de zarparmos, e
que fisicamente ainda estávamos ali em casa
somente para finalizar esses compromissos para então alcançar o
espírito! A realização de um sonho é um momento mágico que em um segundo apaga
todo o sacrifício da preparação.
Qual o requisito primordial para
largar as “amarras do sistema”?
Total cumplicidade da família. Embora em geral
o sonho de viajar pelos sete mares seja sempre uma iniciativa do homem, somente
a participação e concordância irrestrita da mulher e eventualmente filhos vai
viabilizar o projeto, pois ele requer algumas trocas que podem ser sacrifícios
individuais. É necessário, às vezes, adiar os próprios sonhos para ajudar o
outro a realizar o seu!
Marçal, você possui larga experiência
como capitão e percebi, através dos seus escritos, que nunca pegaram uma forte
tempestade nessas andanças pelo mundo a bordo do Rapunzel. O conhecimento e
interesse em meteorologia é coisa primordial ao navegador?
Sim, é fundamental ter uma boa noção e prática na
interpretação de informações meteorológicas (cartas sinóticas, avisos de mau
tempo, imagens de satélite, etc.) e ter bom senso para antecipar as mudanças,
ou seja fazer uma previsão de tempo momentânea. Isso vai possibilitar se
preparar para as mudanças e evitar problemas. A razão de termos tido tão poucos
problemas na viagem foi nossa capacidade de entender como os sistemas de tempo
funcionavam em cada região.
De modo geral, é mais difícil fazer
uma viagem de circunavegação hoje, ou os desafios são os mesmos?
No fundo acho que o mar será sempre o grande desafio
embora, pelos relatos que
vejo dos circunavegadores atualmente, pareça que mesmo o mar está mais
complicado. Em toda viagem mais recente alguém pega um “rabo de furacão”, um
tsunami, ou pelo menos dias e dias de ondas de 5 a 7 metros. Nós, em 21 anos de
vela no Rapunzel, jamais enfrentamos uma onda maior do que 4 ou exagerando, no
máximo 5 metros durante uma noite...
O interessante é que deveria
ser o contrário, hoje com as previsões de tempo sofisticadas e disponíveis em
tempo real, poderia se evitar mais facilmente esses contratempos!
Já a burocracia e custo de viagem, isso sim acho que se
complicaram muito. O mundo atual com sua avidez em controle e vigilância esta
condenando aquela ideia de sair por aí “sem lenço nem documento” a um
sonho utópico.
É dispensável perguntar que essa experiência
marcou e, provavelmente, mudou a forma como vocês enxergam o mundo. Que reflexos
psicológicos essa grande vivência despertou?
Sem dúvida foi uma experiência que mudou completamente
nossos valores, nossas expectativas e nossa maneira de viver. Ser o único
responsável pelo resultado de todas as suas ações torna as pessoas mais
modestas , cuidadosas, menos egoístas e mais conscientes de seu lugar no mundo.
Viver com a família 24 horas por dia em um espaço tão restrito como um barco
nos ensina a compreensão, respeito e tolerância de forma muito profunda.
E para os filhos, participar de tudo na vida a bordo trás
responsabilidade, autoconfiança e determinação como escola alguma seria capaz
de ensinar. Imagine o que muda em um garoto de 13 anos, cuja única
responsabilidade era ir para a escola e fazer as lições de casa, de repente estar no cockpit de um veleiro de 12 metros, no meio da noite, em pleno oceano, fazendo
seu turno de vigília responsável pelo resto da família que dorme tranquila lá
em baixo... É uma lição de confiança!
Vocês recomendariam a experiência de
uma circunavegação à outras pessoas?
Dar a volta ao
mundo não tem um significado concreto em si, é como escalar o Everest, ou
cruzar o Canal da Mancha a nado, é no fundo um ato a mais na vida de seus
protagonistas. Mas ao fazermos isso nos tornamos importantes para um mundo de gente, igualmente sonhadoras.
Elas nos incentivam e acompanham com entusiasmo. E quando
nos veem concretizando nosso sonho provavelmente
irão pensar ...“eles não desistiram...eu também não vou desistir...” e isso é
importante, alimentar o espírito humano, que nunca se rende. Sim, acho que todo
aquele que sente esse apelo, ou de qualquer outro sonho, deve segui-lo.
Viajar pode, em certa medida, nos amadurecer
espiritualmente, você acredita nisso?
Quando se passa por qualquer experiência fora
dos padrões estabelecidos com certeza mudamos internamente. Ninguém exprimiu
com tanta ênfase esse sentimento como Deborah Kinley, sobrevivente de um naufrágio: “Aquele
que conheceu as alturas e os abismos nunca mais conhecera a paz. Não como o
calmo coração a conhece. Um muro coberto de era, o jardim ao lado ou o velho
encanto de uma rosa, e, embora volte a trilhar os caminhos humildes do homem,
jamais falará a linguagem comum.”
A sua abordagem como escritor é muito
amistosa, informal e honesta, isso nos prende à leitura. Quais destinos lembram
com saudades e desejariam revisitar?
Creio que é unanimidade familiar, nossos
lugares inesquecíveis foram San Blás no Panamá, atol de Ahe na Polinésia
Francesa, Tonga na Melanésia, Chagos no Índico e África do Sul. São nossas
mais caras lembranças, locais onde ficamos mais tempo obviamente.
Muito legal, Ricco. Já havia lido o Marçal e gostei muito. Continue a 'saga' que servirá de incentivo prá todos nós!! Exemplo a ser seguido!!
ResponderExcluirMuito obrigado Cmte. Stark! Amanhã entra a última parte da entrevista. Eu tinha muita curiosidade de fazer essas perguntas, que maravilha saber que está gostando.
ExcluirAbraços desde a Babitonga!